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O Conflito na Ucrânia e a Geopolítica Espacial.


Figura disponível em: https://www.atlanticcouncil.org/wp-content/uploads/2022/03/2022-03-23T080925Z_1614228540_MT1EYEIM246960_RTRMADP_3_RUSSIA-SMEARS-PRO-WAR-SYMBOL-Z-ON-ROCKET-LAUNCHED-INTO-SPACE.jpg

Nos dias de hoje temos cinco ambientes de guerra conhecidos: ar, mar, terra, cibernético e espacial. Porém, no atual conflito da Ucrânia com a Rússia tem-se dado pouca relevância ao último, sendo poucas as análises sobre esse assunto, principalmente no nosso país.

Nesse sentido, com o intuito de começar a preencher essa lacuna, apresentamos abaixo o artigo de Matheus Marculino dos Santos, que é colaborador do Blog referente a Geopolítica Espacial, e que recomendamos a leitura.

Convém mencionar que o Blog vem acompanhando a Geopolítica Espacial, por meio dos seus artigos, e que podem ser acessados na nossa Seção sobre o tema constante no link https://www.atitoxavier.com/my-blog/categories/geopol%C3%ADtica-espacial.

A guerra entre Rússia e Ucrânia e os seus efeitos na geopolítica espacial.


Matheus Marculino dos Santos[1]


A recente escalada de tensão envolvendo Rússia e Ucrânia evidenciou ainda mais a importância das aplicações espaciais. Em meio a uma guerra de retórica, semanas antes da invasão russa, o Ministro das Relações Exteriores do país, Sergey Lavrov, enfatizou diversas vezes a comunidade internacional que a mobilização de tropas na fronteira ucraniana era devido a um treinamento de rotina do exército russo. Contudo, os satélites posicionados em órbita tanto dos EUA quanto da Agência Espacial Europeia (ESA)[2], já constavam a movimentação suspeita do exército russo e a sua logística mobilizada. Essa condição foi fundamental para colocar em alerta as tropas da OTAN[3](Organização do Tratado do Atlântico Norte) posicionadas próximo ao país, as forças ucranianas e também as cidades que fazem fronteira com a Rússia e Belarus.

Na imagem abaixo (figura 1), é possível ver o comboio russo em direção à Ucrânia. Na atual conjuntura internacional, as tecnologias espaciais são um fator estratégico no chamado teatro de operações. Elas oferecem informações privilegiadas acerca das condições do clima, do andamento da guerra, do gerenciamento das tropas e das telecomunicações. O uso das imagens de satélites permite a visualização entre as nuvens com a tecnologia radar (em inglês, SAR) e acompanhamento em tempo real do que acontece no campo de batalha. Ademais, os atores que dominam as tecnologias espaciais como a Rússia, possuem benefícios militares, tecnológicos e até mesmo econômicos que auxiliam na projeção de poder e prestígio internacional.


Figura 1 – Comboio de veículos blindados russos em direção à Ucrânia.


Muitos desses atributos mencionados acima estão relacionados à autonomia, pois o domínio da tecnologia espacial está concentrado em um seleto grupo atores, sobretudo a Rússia, China e EUA. Eles podem ser considerados potências espaciais, e possuem uma série de satélites próprios capazes de monitorar os seus territórios e também qualquer outra parte do globo terrestre. Em uma época de instabilidade no continente europeu, as informações providas por eles podem ser negadas pelos atores que detêm os ativos espaciais, pois são de alto valor agregado e decisivas na guerra.

Um importante aspecto nas operações táticas da Rússia tem sido o seu próprio serviço de geolocalização, o GLONASS, desenvolvido no início da década de 1980 na época da então URSS. Ele é semelhante ao GPS norte-americano, apresenta uso dual (civil-militar) e fruto do seu desenvolvimento tecnológico na área aeroespacial. A sua própria constelação de satélites de geolocalização é estratégica para maior eficiência na gestão de suas tropas, na maior segurança das suas linhas de comunicação, na utilização pelos seus aviões, helicópteros, navios e submarinos, na guiagem de mísseis e na maior precisão dos ataques. Quanto a este último fator, ele é notório nos ataques aéreos russos, onde as armas atingem locais estratégicos que neutralizam as capacidades ucranianas de ataque ou defesa.

Na atual geopolítica espacial, as tecnologias espaciais empregadas no campo de batalha são cada vez mais decisivas. Elas são fundamentais para a projeção de poder e influência russa no seu ambiente regional imediato, especialmente na proteção dos seus recursos naturais (gás natural e petróleo) e no auxílio à Belarus. Essa última é um histórico aliado diplomático e militar que tem servido de base para as tropas russas invadirem o território ucraniano.

Algo que se acentuou nesse conflito foi a presença de atores privados que visam oferecer soluções rápidas de telecomunicações, um serviço de grande relevância em uma guerra tanto para os civis quanto para os militares. Um exemplo disso é o caso da SpaceX, de Elon Musk, onde tem demonstrado pelas redes sociais seu apoio à Ucrânia. Logo após o início da guerra, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky usou o seu Twitter para comunicar que o bilionário do setor espacial ia ajudar o país. Isso ocorreu com o fornecimento de antenas parabólicas para a captação de internet banda larga de alta velocidade da Starlink, uma constelação de mini satélites de baixo custo responsável por conectar lugares isolados. Desde o início de março, estes satélites têm sido utilizados para substituir a infraestrutura de internet convencional do país, que foi seriamente afetada pelo conflito. Na figura abaixo (2), é possível ver a informação do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky sobre o fornecimento de internet Starlink.


Figura 2 – Twitter de Zelensky

Reprodução própria


Pouco tempo após o Twitter do líder ucraniano, o país já tinha recebido o primeiro lote de carregamento de antenas da SpaceX, que foi destinado ao seu exército e às principais cidades do país. Isso permitiu aos cidadãos a divulgação de vídeos e relatos da guerra em tempo real sem a dependência de provedores russos. Esses últimos eram historicamente utilizados pelo país, mas seu sinal foi interrompido assim que a guerra começou. Vale destacar que o domínio da tecnologia espacial pela Rússia somada às atitudes autoritárias de Vladimir Putin leva a um grande controle da informação feito pelo Estado. Onde os cidadãos enfrentam restrições ao acessar redes sociais como Twitter e Facebook e os veículos midiáticos são censurados.


1. Os efeitos da guerra no programa espacial russo


O impacto da guerra entre Rússia e Ucrânia tem efeitos diversos na geopolítica espacial. Por ser o primeiro ator a lançar um satélite ao espaço em 1957 (Sputnik-1) e também o primeiro astronauta em 1961 (Iuri Gagarin), historicamente a Rússia tem sido um importante player espacial. O país tem diversas parcerias ao redor do mundo, sendo uma das principais a da Estação Espacial Internacional (em inglês ISS) atualmente em órbita, e que recentemente, a sua vida útil foi estendida até o final desta década (XAVIER, 2022a). O acirramento da guerra é um fator que pode estimular ainda mais a Rússia e os EUA a investirem em seus programas espaciais, especialmente em alternativas rápidas e baratas para uma estação espacial própria. Os principais motivos para isso são: (1) ter monitoramento constante da superfície terrestre, (2) ter maiores capacidades espaciais e (3) competição entre os Estados por posições estratégicas no ambiente espacial.

Segundo Sacani (2022), enquanto os motores que corrigem a órbita da ISS são russos, os painéis solares que geram energia são norte-americanos. Isso ressalta uma situação de estreita coordenação entre as potências internacionais para a manutenção da Estação, pois uma possível escalada da guerra poderia colocar um fim próximo dessa cooperação espacial emblemática e deixar incerto o principal meio de permanência no espaço de Rússia e EUA.

Já Cardoso (2022) e Sacani (2022) revelam que a Rússia cancelou a sua participação em diversos projetos de pesquisa com atores internacionais, sendo os principais: uma rede de telescópios de Raio X, cooperação com a Agência Espacial Europeia (ESA) para o lançamento de foguetes a partir da base de lançamento de Kourou, Guiana Francesa, ao cancelamento da missão EXOMARS, inicialmente prevista para o segundo semestre de 2022, mas adiada para 2024. Ela ocorreria em parceria entre a ESA e a ROSCOSMOS, a agência espacial russa.

Há também cooperação com a China, onde os dois países divulgaram a intenção de construir uma base lunar até meados de 2030 (SACANI,2022). Na atual geopolítica espacial, a China é o único ator com presença autônoma na órbita baixa terrestre (em inglês, LEO) com a Estação Espacial Tiangong. Isso garante a ela a condução de experiências científicas estratégicas para o seu desenvolvimento tecnológico e também para uma futura ida à Lua. Vale destacar que as relações entre China e Rússia se aprofundaram ao longo dos últimos anos, a ponto de ela ser considerada uma “parceria sem limites”, isto é, o aprofundamento da relação entre os dois países no campo comercial, econômico, militar espacial, etc (XAVIER, 2022b).

Exemplo do alinhamento sino-russo foi a neutralidade chinesa face à sua invasão ao território ucraniano. Xavier (2022b) cita que a China não comenta a questão ucraniana ou a perseguição do governo russo aos seus opositores. Da mesma forma, a Rússia não condena ou comenta negativamente a problemática chinesa envolvendo Taiwan ou a repressão em Hong Kong (XAVIER, 2022b). Isso reforça o alinhamento entre as duas potências em não se envolverem em suas questões internas sensíveis, e é uma maneira de atuarem ainda mais em conjunto diminuindo as discórdias inerentes a uma cooperação.

As sanções econômicas promovidas pelos Estados Unidos e demais membros do G7, causaram impactos internos e externos para a Rússia. Um deles se refere ao Cosmódromo de Baikonur[4], a primeira e maior base de lançamentos do mundo. Esse centro espacial é estratégico para o programa espacial russo e para a atual geopolítica espacial, pois tem um grande peso nos lançamentos espaciais feitos pela Rússia. Após o fim dos ônibus espaciais em 2011, ele foi a única forma de acesso ao espaço pelos astronautas norte-americanos (CARDOSO, 2022). Isso ocorreu ao custo de milhões de dólares por tripulante, o que gerou uma receita estratégica ao país. Essa dependência foi encerrada somente em maio de 2020 quando a empresa norte-americana SpaceX foi contratada pelo governo norte-americano para enviar os seus astronautas (CARDOSO, 2022).

Devido a guerra, algumas empresas cancelaram o lançamento de satélites que aconteceriam neste local pelos foguetes russos. Foi o caso da OneWeb, empresa de internet via satélite de alta velocidade concorrente da Starlink, que tinha pago a bagatela de US$1 bilhão de dólares para lançar seus satélites no foguete Soyuz no início de março (CARDOSO, 2022). No entanto, um dos requisitos feitos por Dmitry Rogozin, Diretor-Geral da Roscosmos, a agência espacial russa, era a não utilização dos satélites para fins militares e que o governo inglês abrisse mão de sua participação de 42% na empresa (CARDOSO, 2022). Esse caso demonstra a potencialidade de uso dual das tecnologias espaciais, pois uma constelação de satélites de internet pode tanto conectar lugares isolados quanto fornecer auxílio nas operações táticas em uma guerra.

Com isso, uma opção encontrada pela empresa norte-americana foi fechar um novo acordo com a SpaceX (CASSITA, 2022). Os foguetes Falcon 9 da empresa norte-americana são uma alternativa mais moderna e barata aos tradicionais foguetes Soyuz, ainda mais pelo fato deles serem reutilizáveis, uma tecnologia considerada disruptiva no meio espacial que tem ampliado o número de atores com satélites próprios no espaço. Por último, os efeitos dessa guerra na geopolítica espacial ainda não são totalmente conhecidos, mas é certo que ela acirra a corrida tecnológica pelas grandes potências, onde a competição vem se sobrepondo à cooperação internacional.


Referências

CARDOSO, C. Rogozin manda programa espacial russo pro espaço. Terra. com. mar 2022. Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/tecnologia/rogozin-manda-programa-espacial-russo-pro-espaco,2802e36368c57d5d91bc6d4c2c90a267ahhdsq2n.html

CASSITA, D. SpaceX vai lançar novos satélites de internet da concorrente OneWeb. Canaltech. 21 mar 2022. 2022. Disponível em: https://canaltech.com.br/espaco/spacex-vai-lancar-novos-satelites-de-internet-da-concorrente-oneweb-212017/

SACANI, S. O impacto da guerra entre Rússia e Ucrânia na exploração espacial – parte I. Space Today. 2022. Disponível em: https://spacetoday.com.br/o-impacto-da-guerra-entre-russia-e-ucrania-na-exploracao-espacial-parte-i/

XAVIER, A. T. A nova corrida espacial e a geopolítica do espaço: A Era da Competição entre as Grandes Potências. Tito Geopolítica. 10 jan 2022. 2022a. Disponível em: https://www.atitoxavier.com/post/a-nova-corrida-espacial-e-a-geopol%C3%ADtica-do-espa%C3%A7o-a-era-da-competi%C3%A7%C3%A3o-entre-as-grandes-pot%C3%AAncias

XAVIER, A. T. A Aliança Estratégica Sino- Russa e a Nova Ordem Mundial. Tito Geopolítica. 6 fev 2022. 2022b. Disponível em: https://www.atitoxavier.com/post/a-alian%C3%A7a-estrat%C3%A9gica-sino-russa-e-a-nova-ordem-mundial

[1] Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGRI-UERJ); e-mail: matheus_rj96@hotmail.com; Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9859-6823 [2] Agência espacial com uma estrutura institucional que reúne 22 Estados. Ela tem um papel estratégico na política de defesa da Europa e no desenvolvimento tecnológico. [3] Aliança militar de segurança coletiva criada após a 2ª Guerra Mundial que reúne os aliados dos EUA. [4] Localizado no Cazaquistão, uma ex-República da URSS.

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