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Artigo: Soberania: Será que está em transformação?


Figura disponível em: https://www.geopolitica.ru/sites/default/files/styles/wide_16_9/public/1433325830_sovereignty.jpg?itok=djwqaKD1

Em 2008 escrevi um artigo que foi publicado na Revista Eletrônica Boletim do TEMPO, Ano 3, Nº33, Rio de Janeiro, 2008 da UFRJ, com o título desse post. Nele, eu fiz uma análise se o conceito de soberania estava em transição do conceito clássico para uma nova forma. Sendo assim, coloquei abaixo para os leitores poderem analisar se continua válido. Afinal, o conceito de soberania é muito importante para podermos continuar com as nossas análises geopolíticas, ainda mais com a globalização e as diversas organizações multilaterais, que por vezes causa confusão em alguns, como ONU, OEA dentre outras, bem como as ações internacionais maquiadas com a "boa vontade". Além disso, estamos na era da guerra cibernética que não possui fronteiras físicas. Dessa forma, como fica o conceito de soberania?

Ao final temos dois vídeos para lhe ajudar na análise sobre o tema. Boa leitura!


SOBERANIA: será que está em transformação?

1 INTRODUÇÃO

Nos dias de hoje existem grandes discussões e estudos acerca do conceito de soberania do Estado, principalmente devido aos conflitos modernos, à globalização e às ingerências de Estados em outros se valendo de alegações múltiplas, como: intervenções humanitárias, combate ao terrorismo, etc.

O entendimento de como e quando o conceito de soberania do Estado moderno se consolidou, auxilia na percepção do modo como estes Estados passaram a se relacionar. Neste sentido, o presente artigo tem por propósito verificar como o Tratado de Vestfália (1648) contribuiu para a consolidação do conceito de soberania do Estado moderno. Para tal, serão utilizadas algumas fontes que ajudarão a compreender o estudo. Uma das fontes nos mostra tal assertiva:

MacShane [1] não hesitou em argumentar no sentido de que a ordem internacional contemporânea reveste-se de um caráter marcadamente ‘pós-nacional’, ou seja, de que não há mais lugar para ‘nacionalismos puros’ nem para uma concepção de estado calcada nos fundamentos tradicionais da soberania, tal como estipulada conceitualmente por Jean Bodin no século XVI, no sentido de que o poder do Estado é supremo e não pode ser contestado, e historicamente pelo Tratado de Vestfália de 1648. (CEBRI, 2001, p. 1)

Para os leitores interessados no assunto, o trabalho em lide poderá contribuir para uma análise sobre a validade do conceito em pauta nos dias atuais ou se o mesmo está em transformação. Sendo assim, será abordado de forma resumida o que foi o Tratado de Vestfália, bem como será discutido o conceito de soberania antes e depois do referido tratado.

É preciso salientar que o artigo não tem a pretensão de esgotar o assunto, mas pelo contrário, pretende suscitar a reflexão e fomentar um debate acerca de tema tão atual.

2 TRATADO DE VESTFÁLIA

O Tratado de Vestfália marcou o fim do primeiro grande conflito europeu, ocorrido no período de 1618 a 1648. No princípio tinha como motivação a causa religiosa, porém com o passar do tempo adquiriu ares de uma luta pelo poder na Europa. Tal conflito ficou conhecido como a Guerra dos Trinta Anos, teve seu início na Boêmia e acabou se alastrando pelo continente europeu, tomando assim, dimensões internacionais, pois foram envolvidos os principados protestantes do Sacro Império Romano da Nação Germânica, Dinamarca, Noruega, Suécia, França e Espanha.

A Paz ou Tratado de Vestfália (atualmente situa-se na região oeste da Alemanha), foi negociada durante aproximadamente quatro anos nas cidades de Münster e de Osnabrück (ambas se localizavam na região de Vestfália). Tais sítios eram de extrema importância, pois os representantes católicos e protestantes não aceitavam encontrar-se. Com isso, os primeiros ficaram em Münster e os outros em Osnabrück. Os tratados acordados nessas localidades da Vestfália foram reunidos e deram origem ao Tratado de Vestfália. Seus termos fizeram uma série de alterações territoriais (definindo fronteiras dos Estados partícipes), reconhecendo a soberania dos Estados envolvidos (controle absoluto sobre os seus territórios), além da conseqüente diminuição do poder do Sacro Império Romano (tendo como resultado a liberdade de escolha de religião por parte dos Estados e de suas minorias).

Vários autores e estudiosos afirmam que o Tratado de Vestfália foi o início da diplomacia moderna, pois foi a primeira vez em que se reconheceu a soberania do Estado, conforme nos mostra Vieira [2] (2002) quando afirma:

A ordem internacional que conhecemos hoje remonta ao século XVII, mais precisamente a 1648, quando foi assinado o Tratado de Vestfália. Como se sabe, os princípios normativos centrais fixados neste tratado - territorialidade, soberania, autonomia e legalidade - configuraram o sistema internacional de Estados. As relações entre Estados igualmente soberanos ficam submetidas ao direito internacional, desde que cada um deles assim o consinta, já que não há autoridade legal para além do Estado capaz de impor obrigações legais a ele ou a seus cidadãos.

Sobre a questão, Régis [3] (2006, p. 6) também relata:

Antes do Tratado de Vestfália de 1648, a regra era a existência de jurisdições interpenetrantes de autoridades políticas, com ausência de hierarquia entre elas. Nesse sistema feudal, os vínculos com as autoridades eram difusos, descentralizados, e baseados em ligações pessoais, não territoriais. Neste contexto, as pessoas tinham ligações simultâneas e conflitantes com o Papa, com os reis, com os bispos, e com os príncipes, duques, condes, ou barões locais. Todos esses exigiam de um determinado povo, habitante de um mesmo espaço geográfico, obrigações diversas e onerosas. Por exemplo, eles coletavam tributos e cobravam a prestação de serviço militar compulsório. Os vínculos das pessoas com as autoridades políticas eram baseados em acordos pessoais. A autoridade política era vista como algo de natureza privada.

Sendo assim, concluímos que o Tratado de Vestfália marcou o início do sistema internacional de Estados, pois abordou princípios que possibilitaram o relacionamento entre os Estados, dentre tais temas destacamos a soberania e o fortalecimento do poder do Estado.

3 SOBERANIA

De acordo com Bobbio (1980) o conceito de soberania do Estado que passa a incidir na teoria das formas de governo, é a que Jean Bodin (1530-1596), que passou para a história do pensamento político como o teórico da soberania, em sua obra Os Seis Livros da República, em 1576, define como: “Soberania é o poder absoluto e perpétuo que é próprio do Estado.” E consoante Riscal [4] (2001, p. 5) nos apresenta, foi devido a esse conceito que se pode reconhecer, pela primeira vez, o poder público, ou Estado, como ator da política moderna [5]. Com isso, vemos que o conceito em lide existia antes do Tratado de Vestfália. Pelo que se depreende dele, Bodin advoga que somente o Estado possui o monopólio do poder, ou seja, não admite a divisão do poder soberano e não aceita a existência de qualquer outro poder semelhante dentro do Estado. Porém, antes do tratado, sobressaía-se o poder do direito divino, conforme Amaral [6] (2005, p. 1) afirma:

No período que antecedeu Vestfália, imperava na Europa a teoria do direito divino, ou seja, de que todo o poder vem de Deus. S. Tomás, citado por Darcy Azambuja, "distingue no poder três elementos: o princípio, o modo e o uso. O princípio do poder reside em Deus, criador de todas as coisas. Mas o modo e o uso vêm dos homens, a fonte humana da soberania é o povo". Ou seja, Deus era o princípio e a fonte de todo o poder, e um representante divino de Deus dentre o povo, era titular deste poder dito soberano.

Após Vestfália, observa-se que o conceito de soberania do Estado enunciado por Bodin é reafirmado, pois há uma asseveração do poder do Estado (conforme visto no tópico anterior), resultando com que as guerras posteriores ao tratado não tenham a religião como motivo principal, mas sim as questões referentes ao Estado. Os mesmos, por serem soberanos, ficam em igualdade entre si, ou seja, somente eles possuem legitimidade para exercer o poder dentro do seu território e se relacionarem com outros Estados, conforme Amaral (2005, p. 1) nos mostra: “Tal igualdade eliminou o poder supremo da Igreja e conferiu aos Estados o direito e o poder de negociarem livremente como únicos responsáveis nas políticas internacionais.”.

Esse conceito de soberania (igualdade jurídica entre os Estados, e o Estado com o monopólio do poder dentro do seu território) continuou sendo empregado, conforme pode ser visto na Carta da ONU (ONU, 1945, p. 2):

Artigo 2
A Organização e seus Membros, para a realização dos propósitos mencionados no Artigo 1, agirão de acordo com os seguintes Princípios:
1. A Organização é baseada no princípio da igualdade de todos os seus Membros. [....]
7. Nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado ou obrigará os Membros a submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos da presente Carta; este princípio, porém, não prejudicará a aplicação das medidas coercitivas constantes do Capitulo VII.

Da mesma forma, verifica-se que tal conceito já não é tão absoluto como era na referida época (Século XVII), pois atualmente os Estados não são tão soberanos quando a segurança e a paz internacionais estiverem ameaçadas. Pois é prevista a aplicação de medidas coercitivas, conforme podemos ver na própria Carta da ONU (ONU, 1945, p. 5):

Artigo 42
No caso de o Conselho de Segurança considerar que as medidas previstas no Artigo 41 seriam ou demonstraram que são inadequadas, poderá levar a efeito, por meio de forças aéreas, navais ou terrestres, a ação que julgar necessária para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais. Tal ação poderá compreender demonstrações, bloqueios e outras operações, por parte das forças aéreas, navais ou terrestres dos Membros das Nações Unidas.

Despontou, também, uma grande preocupação mundial com os direitos dos indivíduos, pois como a Declaração dos Direitos Humanos (ONU, 1948) nos informa:

Artigo XXX.
Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos.

Tal preocupação aliada a uma forte opinião pública mundial e a globalização dos dias de hoje, faz com que as violações aos direitos humanos sejam duramente condenadas pela comunidade internacional.

Sendo assim, observamos nos dias de hoje algumas intervenções humanitárias em Estados soberanos. Tais ações encontram respaldo na Carta da ONU e na Declaração dos Direitos Humanos. Conforme Byers (2007, p. 124) nos mostra:

A Resolução 688 não autorizava expressamente o emprego da força contra o Iraque. Os países intervenientes sustentaram sem grande convicção que o fato de o Conselho de Segurança ter estabelecido a existência de uma ameaça à paz e à segurança internacionais constituía implicitamente autorização para as suas ações. Um desses países – o Reino Unido – valeu-se da oportunidade para propor uma doutrina de intervenção unilateral, com a seguinte declaração do Ministro de Relações Exteriores e da Comunidade Britânica:
Consideramos que a intervenção internacional sem convite do país envolvido se justifica em casos de extrema necessidade humanitária. Por isto decidimos mobilizar tropas britânicas na Operação Zona de Segurança, montada pela coalizão para atender à crise de refugiados envolvendo curdos iraquianos.

Além das intervenções humanitárias, existe a guerra ao terrorismo internacional, que por não possuir fronteiras definidas, dá justificativa a um Estado intervir em outro visando combater tal ameaça. Podemos ver que atualmente vem sendo empregada a força contra a integridade territorial e a independência política do Estado, ferindo assim, o conceito de soberania de Bodin.

Com tudo o que vimos acima, verificamos que tal conceito encontra-se em transformação.

4 CONCLUSÃO

Com o exposto anteriormente, de forma resumida, vimos que o conceito de soberania do Estado moderno foi elaborado por Jean Bodin, em 1576, e como o Tratado de Vestfália (1648) foi importante para a consolidação do aludido conceito, pois reafirmou o poder do Estado, colocando-o como o detentor do monopólio do poder, dentro do seu território, bem como, também, foram definidas fronteiras territoriais dos Estados. O referido tratado restaurou a paz na Europa, e inaugurou uma nova fase na história política do continente ao propiciar o triunfo da igualdade jurídica dos Estados. Ainda como conseqüências, destacam-se a eliminação do poder universal da Igreja, e a permissão para os Estados se relacionarem livremente. Com isso, este conceito passou a fazer parte das relações internacionais, e tornou-se preponderante para entender as origens dos conflitos. Após a Segunda Guerra Mundial, a elaboração da Carta da ONU (1945) e da Declaração dos Direitos Humanos (1948) contribuiu para relativizar o emprego do conceito de soberania do Estado, fazendo com que os Estados não tivessem os fundamentos tradicionais de soberania observados, pois além dos documentos citados anteriormente, existem, no nosso presente, o combate ao terrorismo internacional, a opinião pública mundial, a globalização e outras preocupações internacionais que justificam a intervenção de um Estado(s) em outro, visando manter a segurança e a paz internacionais. Por isso, podemos concluir com o artigo exposto que o conceito de soberania do Estado moderno surgido em 1576 (Bodin), e consolidado em 1648 (Tratado de Vestfália), está em transformação nos dias atuais.


REFERÊNCIAS

AMARAL, Renata Vargas. Análise jurídica de intervenção humanitária internacional. Jus Navigandi, [S.l.], p. 3, dez. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/ texto.asp?id=8861 >. Acesso em: 15 abr. 2008.

BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. Tradução de Sérgio Bath. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980.

BYERS, Michael. A lei da guerra. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2007.

CENTRO BRASILEIRO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS - CEBRI. Ministro Britânico propõe formação de ‘Aliança Atlântica’. CEBRI, Rio de Janeiro, n. 20, p. 2, 17 dez. 2001. Disponível em: <http://www.cebri.org.br/pdf/67_PDF.pdf>. Acesso em: 16 abr. 2008.

ORGANIZAÇÕES DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU. Carta da ONU, 26 jun. 1945. São Francisco, Estados Unidos da América. Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br/documentos_carta.php> . Acesso em: 18 abr. 2008.

ORGANIZAÇÕES DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU. Declaração dos Direitos Humanos. 1948. [S.l]. Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br/documentos_direitos humanos.php>. Acesso em: 18 abr. 2008.

DEUTSCHE WELLE - DW-WORLD.DE. 1648: Paz da Vestfália encerra Guerra dos Trinta Anos. Calendário Histórico. Alemanha, [2005]. Disponível em: <http://www.dw-world.de/dw/article/0,2144,660411,00.html>. Acesso em: 18 abr. 2008.

RÉGIS, André. Intervenções humanitárias, soberania e a emergência da responsabilidade de proteger no Direito Internacional Humanitário. prim@ facie. [S.l], ano 5, n. 9, pp. 5 – 17, jul./dez. 2006. Disponível em: <http://rbr4.dizinc.com/~ppgcj/gerencia/docs/1906200703 1516.pdf>. Acesso em: 17 abr. 2008.

RISCAL, Sandra Aparecida. O Conceito de Soberania em Jean Bodin: um estudo do desenvolvimento das idéias de administração pública, governo e estado no século XVI. Orientador: Raquel Pereira Chainho Gandini. 2001. 545 f. Tese (doutorado) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP, 2001.

VIEIRA, Liszt. Cidadania, Sociedade Civil e Globalização. Revista Eletrônica Polêmica. [S.l.], n. 5, maio/jun./jul. 2002. Disponível em: <http://www.lisztvieira.pro.br/ artigos_descricao.asp?cod=2> . Acesso em: 16 abr. 2008.


Notas:

[1] Denis MacShane em 2001 era o Vice-Ministro britânico das Relações Exteriores, encarregado de assuntos de América Latina, membro do Parlamento britânico e respondia também por assuntos relacionados ao serviço mundial da BBC e às políticas educacionais, culturais, ambientais, científicas e tecnológicas do Conselho Britânico (‘British Council’). [2] Liszt Vieira é formado em Direito e Ciências Sociais. Mestrado em Desenvolvimento (Universidade de Paris) é, desde 2004, Professor de Sociologia da Puc-Rio, e é doutor em Sociologia pelo IUPERJ. [3] Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas/CCJ/UFPB [4] Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas [5] Riscal (2001, p. 5) argumenta que devido ao conceito de soberania de Bodin, o Estado moderno pode se distinguir das formas anteriores de organização política, medievais ou antigas, porque pela primeira vez foi definido como a instituição pública por excelência, a fonte de onde emana todo o poder político e a única que deve possuir o monopólio do exercício deste poder. [6] Advogada em Florianópolis (SC), mestra em Direito dos Negócios Internacionais pela Universidad Complutense de Madrid

Seguem alguns vídeos para aprofundamento do tema (legendas podem ser inseridas):



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