A influência das ORCRIM nos Estados da América Latina. Parte VI: seria o Comando Vermelho o HAMAS brasileiro?
- Alexandre Tito Xavier
- há 13 minutos
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Introdução
A segurança e a defesa, em sua concepção contemporânea, exigem uma reavaliação constante das ameaças não estatais, cujas naturezas híbridas desafiam as categorias tradicionais de crime organizado e terrorismo. A proposição de comparar o Movimento de Resistência Islâmica (HAMAS), uma entidade política, militar (terrorista) e social enraizada em um conflito geopolítico de longa duração no Oriente Médio, com o Comando Vermelho (CV), uma facção transnacional de crime organizado brasileira com origem no sistema carcerário, convida a uma análise sociológica e estratégica de profundidade.
O objetivo deste artigo é transcender a analogia superficial, examinando as similaridades estruturais e operacionais — em suas origens, modus operandi e apoio logístico — que transformam ambos os grupos em ameaças à estabilidade estatal, ao mesmo tempo em que se delineiam as diferenças cruciais que demarcam suas naturezas e objetivos finais. Assim, tentaremos responder a pergunta do título deste artigo.
Assim, isso exige uma abordagem racional, desprovida de sensacionalismo, focada na morfologia do poder assimétrico. Uma seção final será dedicada à análise do enquadramento da violência do crime organizado brasileiro como Conflito Armado Não Internacional (CANI).
1. Origens e Fundamentos Ideológicos
Característica | HAMAS (Movimento de Resistência Islâmica) | Comando Vermelho (CV) |
Gênese | Surge em 1987, durante a Primeira Intifada, como um braço político-militar e de assistência social da Irmandade Muçulmana na Palestina. | Surge em 1979, no Instituto Penal Cândido Mendes (Ilha Grande, RJ), da mistura de presos comuns com presos políticos (militantes de esquerda do Regime Militar). |
Fundamento Primário | Ideológico-Político-Religioso: Baseado na ideologia do nacionalismo islâmico, busca a libertação da Palestina e o estabelecimento de um Estado islâmico em todo o território histórico, defendendo a luta armada contra a ocupação israelense. | Prisional-Social-Econômico: Inicialmente, um pacto de solidariedade para resistir à opressão e aos maus-tratos do sistema carcerário. Evolui rapidamente para uma organização de controle do crime e exploração econômica. |
Princípio Orientador | A “Resistência” e a destruição do Estado de Israel. A ideologia é o eixo central da existência e do recrutamento. | A “Lei do Crime” e o “Certo pelo Certo”, focando na lealdade interna, na expansão territorial e, principalmente, no lucro (tráfico de drogas e armas, extorsão). |
Similaridade na Gênese: Ambos os grupos nasceram em ambientes de privação e opressão (ocupação/conflito político no caso do HAMAS; sistema prisional brutal no caso do CV). A organização inicial se deu pela necessidade de solidariedade interna e autodefesa contra uma força opressora percebida (Israel ou o Estado penal).
Diferença Crucial de Fundamento: A principal assimetria reside na natureza do conflito. O HAMAS é impulsionado por uma causa geopolítica e ideológica de escopo existencial, visando a alteração da ordem estatal internacional e regional. O CV é movido por objetivos estritamente econômico-criminais, buscando a maximização do lucro e o domínio do mercado ilícito, sem um projeto político para alterar a forma de governo do Estado brasileiro. O HAMAS possui uma dimensão teleológica (orientado por fins, propósitos ou objetivos) explícita; o CV, uma dimensão pragmática.
2. Modus Operandi com a População Local e o Governo
2.1. Controle Territorial e Autoridade Paralela
Ambos exercem uma autoridade paralela em seus territórios de controle. Essa estratégia é fundamental para a sobrevivência e expansão de ambos:
● HAMAS (Gaza): Atua como um Estado-sombra ou de fato. Oferece uma ampla rede de serviços sociais (escolas, hospitais, assistência financeira), o que lhe garante legitimidade e apoio popular significativo. A violência é empregada contra oponentes políticos internos (Fatah) e, externamente, contra o alvo ideológico (Israel), muitas vezes através de táticas assimétricas, incluindo o terrorismo contra civis.
● Comando Vermelho (Favelas): Promove uma governança criminal. Impõe "leis" de conduta (ex: proibição de roubos em determinadas áreas, resolução de pequenos conflitos locais, julgamento de pessoas com execuções), funcionando como um Estado regulador onde o poder público é ausente ou falho. A violência é o mecanismo principal de manutenção do poder, sendo dirigida contra facções rivais, milícias e, ocasionalmente, contra as forças de segurança estatais, utilizando arsenal de guerra (fuzis, granadas, e atualmente drones). O objetivo primário é garantir o fluxo do negócio (tráfico) e a ordem interna que o sustenta.
Similaridade Estratégica: A cooptação social é uma ferramenta de poder. Enquanto o HAMAS usa a assistência social de forma ideológica, o CV utiliza o mecanismo de proteção e justiça alternativa para criar laços de dependência e aceitação, ou pelo menos, resignação, da população local. O Estado é visto por ambos como uma força invasora ou negligente, o que facilita a obtenção de apoio passivo ou ativo.
2.2. Relação com o Governo Central
● HAMAS: A relação é de conflito assimétrico direto com Israel, visto como inimigo existencial. Em Gaza, é o poder instituído, atuando como o principal ator político.
● Comando Vermelho: A relação é de guerra irregular e assimétrica com o Estado brasileiro (Forças de Segurança Pública). O objetivo não é derrubar o governo, mas sim coexistir em antagonismo e garantir a autonomia territorial para a exploração econômica. O CV busca infiltrar-se no sistema político e administrativo para corromper e lavar dinheiro, em vez de o substituir ideologicamente. A violência é o preço da negociação tácita pela autonomia.
3. Apoio Logístico e Financeiro
3.1. Fontes de Financiamento
Fonte | HAMAS | Comando Vermelho |
Principal | Doações internacionais (governos, entidades privadas), taxas em Gaza e impostos sobre mercadorias contrabandeadas, e investimentos externos. | Tráfico ilícito de drogas (especialmente cocaína e maconha) e tráfico de armas de alto calibre. |
Secundária | Fundos provenientes da diáspora e de atividades de investimento financeiro. | Extorsão (cobrança de "taxas" em áreas controladas, serviços de "segurança"), roubos e lavagem de dinheiro em setores formais (imobiliário, transportes). |
Similaridade na Rede Transnacional: Ambos são organizações com estrutura transnacional. O HAMAS possui apoio logístico e redes de arrecadação globais. O CV possui alianças estáveis com fornecedores sul-americanos e células operacionais em diversos estados, utilizando o sistema prisional como centro de comando e recrutamento. Ambos exploram as fronteiras fracas e a globalização financeira para sustentar suas operações.
Diferença na Motivação Financeira: O financiamento do HAMAS é, em grande parte, direcionado para sustentar a infraestrutura da "resistência" (militar e social) e o projeto político, ainda que com grande desvio de recursos. O do CV é quase que integralmente direcionado ao enriquecimento pessoal de seus líderes, à expansão do mercado ilícito e à manutenção da estrutura de poder criminal, o que o insere na categoria de crime organizado clássico.
3.2. Estrutura de Comando
● HAMAS: Possui uma estrutura hierárquica tripartite (política, social/religiosa e militar), com uma liderança estabelecida e internacionalmente reconhecida. A disciplina é alta, regida por um código ideológico.
●Comando Vermelho: Possui uma estrutura mais descentralizada e horizontalizada, com a liderança no sistema prisional ou em esconderijos, mas com autonomia operacional para os "donos do morro" e líderes regionais. A lealdade é baseada no pacto criminal, na força e na reciprocidade dos negócios, sendo, portanto, mais volátil que a coesão ideológica.
4. O Debate Jurídico-Estratégico: Brasil e o Conflito Armado Não Internacional (CANI)
A violência urbana e o combate ao Comando Vermelho (CV) e outras facções criminosas têm levantado um debate crítico entre especialistas em direito internacional humanitário (DIH) e segurança: o Brasil está vivenciando um Conflito Armado Não Internacional (CANI)?
De acordo com o Direito Internacional Humanitário (Convenções de Genebra de 1949, Artigo 3 Comum, e Protocolo Adicional II - PA II), um CANI se caracteriza pela ocorrência de hostilidades entre:
1. Forças armadas do Estado e grupos armados não estatais organizados;
2. Grupos armados organizados entre si.
A aplicação do DIH exige o cumprimento de dois critérios cumulativos:
1. O nível de violência deve ser suficientemente alto, sustentado e não esporádico, aproximando-se de hostilidades.
2. O grupo armado não estatal (no caso, o CV) deve possuir um nível de organização, disciplina e capacidade de comando que o capacite a sustentar operações militares contínuas.
Análise do CV à Luz dos Critérios do CANI:
● Intensidade e Duração: As confrontações entre o CV e as forças de segurança (Batalhões da PM, Polícia Civil, Forças Federais) no Rio de Janeiro e em outras capitais são frequentes, duradouras, utilizam armamento de guerra (fuzis, granadas, drones) e resultam em um alto número de baixas (policiais, membros da facção e, tragicamente, civis). Esse padrão de violência sustentada e letal satisfaz, na prática, o critério de intensidade de um conflito de baixa ou média intensidade.
● Organização do CV: O Comando Vermelho não é uma simples "gangue". Possui estrutura hierárquica (mesmo que descentralizada), estatuto interno, divisão de tarefas (comando, vapor, financeiro), centros de comando (presídios) e capacidade logística transnacional para adquirir e distribuir armamento e recrutar membros. Essa organização, focada no controle territorial do mercado ilícito, atende ao critério de organização para ser considerado um "grupo armado organizado".
Possíveis Implicações do Reconhecimento do CANI:
Se a violência no Brasil contra o crime organizado fosse oficialmente reconhecida como CANI, isso acarretaria consequências jurídicas e estratégicas profundas:
1. Aplicação do DIH: O Estado e os membros do CV teriam que respeitar as regras do DIH, incluindo a proteção de civis e a garantia de tratamento humanitário aos combatentes capturados. O enquadramento jurídico sairia do campo estrito da Segurança Pública e do Código Penal para o Direito de Conflitos Armados.
2. Risco de Legitimação: O reconhecimento poderia, paradoxalmente, conferir uma legitimidade política ou militar ao CV que a organização não possui intrinsecamente, elevando seu status de organização criminosa a um ator de conflito armado, como o HAMAS.
3. Dilema Estratégico: A repressão policial passaria a ser vista como "ações militares", podendo levar à aplicação do Jus ad bellum (direito à guerra) e do Jus in bello (direito na guerra - Direito Internacional Humanitário), com graves repercussões internas e internacionais sobre direitos humanos e soberania.
Assim, embora o Estado brasileiro resista veementemente a essa classificação por receio da legitimação política e das implicações jurídicas (preferindo tratar o fenômeno como "crime organizado"), a realidade factual e a letalidade assimétrica dos confrontos no Brasil (especialmente no Rio de Janeiro) se assemelham, na prática, aos requisitos de um CANI de natureza puramente criminal.
Conclusão
Acreditamos que a análise comparativa entre o HAMAS e o Comando Vermelho é um exercício essencial para especialistas em segurança e defesa, pois ilumina a natureza híbrida das ameaças contemporâneas.
Nesse sentido, somos de opinião de que o Comando Vermelho não é, ainda, o HAMAS brasileiro.
A assimetria fundamental reside na Teleologia: O HAMAS luta pela substituição de uma ordem política/geopolítica baseada em uma ideologia pan-islâmica e nacionalista, o que o define como uma organização Terrorista/Insurgente. O CV luta pela maximização do lucro e do controle territorial do mercado ilícito, o que o define como uma Organização Criminosa Transnacional. O HAMAS busca mudar a lei internacional; o CV busca evadir a lei nacional.
No entanto, a simetria operacional é inegável:
● Ambos empregam táticas de governança paralela e cooptação social em áreas de vácuo estatal.
● Ambos mantêm um conflito armado de alta intensidade com o Estado (embora a natureza do conflito do CV se encaixe no perfil factual de um Conflito Armado Não Internacional de motivação criminal, ainda que não oficialmente reconhecido).
● Ambos operam com logística transnacional sofisticada e vasta capacidade de armamento.
Portanto, a grande lição estratégica para o Brasil é que o combate ao Comando Vermelho não pode mais ser relegado exclusivamente à esfera da segurança pública tradicional. As táticas, o armamento, a organização e a dimensão territorial do CV exigem uma resposta Multidimensional e Híbrida, que incorpore elementos de defesa (desarticulação logística e financeira em nível internacional) e de política social/inteligência, em vez de apenas incursões militares pontuais.
O Brasil não enfrenta uma insurgência política, mas sim uma insurgência criminal de poder equiparável, exigindo do Estado uma redefinição urgente de seu enquadramento legal e estratégico para enfrentar uma ameaça que, embora não ideológica como o HAMAS, compromete a integridade da soberania nacional com igual letalidade e eficácia.
Qual a sua opinião?
Seguem alguns vídeos para auxiliar a nossa análise:
Matéria de 30/10/2025:
Matéria de 29/10/2025:
Matéria de 29/10/2025:
Matéria de 30/10/2025:
Matéria de 29/10/2025:
