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A influência das ORCRIM nos Estados da América Latina. Parte VI: seria o Comando Vermelho o HAMAS brasileiro?

Figura elaborada por IA, que representa o desafio da criminalidade à soberania do Estado
Figura elaborada por IA, que representa o desafio da criminalidade à soberania do Estado

Introdução

A segurança e a defesa, em sua concepção contemporânea, exigem uma reavaliação constante das ameaças não estatais, cujas naturezas híbridas desafiam as categorias tradicionais de crime organizado e terrorismo. A proposição de comparar o Movimento de Resistência Islâmica (HAMAS), uma entidade política, militar (terrorista) e social enraizada em um conflito geopolítico de longa duração no Oriente Médio, com o Comando Vermelho (CV), uma facção transnacional de crime organizado brasileira com origem no sistema carcerário, convida a uma análise sociológica e estratégica de profundidade.

O objetivo deste artigo é transcender a analogia superficial, examinando as similaridades estruturais e operacionais — em suas origens, modus operandi e apoio logístico — que transformam ambos os grupos em ameaças à estabilidade estatal, ao mesmo tempo em que se delineiam as diferenças cruciais que demarcam suas naturezas e objetivos finais. Assim, tentaremos responder a pergunta do título deste artigo.

Assim, isso exige uma abordagem racional, desprovida de sensacionalismo, focada na morfologia do poder assimétrico. Uma seção final será dedicada à análise do enquadramento da violência do crime organizado brasileiro como Conflito Armado Não Internacional (CANI).


1. Origens e Fundamentos Ideológicos

Característica

HAMAS (Movimento de Resistência Islâmica)

Comando Vermelho (CV)

Gênese

Surge em 1987, durante a Primeira Intifada, como um braço político-militar e de assistência social da Irmandade Muçulmana na Palestina.

Surge em 1979, no Instituto Penal Cândido Mendes (Ilha Grande, RJ), da mistura de presos comuns com presos políticos (militantes de esquerda do Regime Militar).

Fundamento Primário

Ideológico-Político-Religioso: Baseado na ideologia do nacionalismo islâmico, busca a libertação da Palestina e o estabelecimento de um Estado islâmico em todo o território histórico, defendendo a luta armada contra a ocupação israelense.

Prisional-Social-Econômico: Inicialmente, um pacto de solidariedade para resistir à opressão e aos maus-tratos do sistema carcerário. Evolui rapidamente para uma organização de controle do crime e exploração econômica.

Princípio Orientador

A “Resistência” e a destruição do Estado de Israel. A ideologia é o eixo central da existência e do recrutamento.

A “Lei do Crime” e o “Certo pelo Certo”, focando na lealdade interna, na expansão territorial e, principalmente, no lucro (tráfico de drogas e armas, extorsão).

 

Similaridade na Gênese: Ambos os grupos nasceram em ambientes de privação e opressão (ocupação/conflito político no caso do HAMAS; sistema prisional brutal no caso do CV). A organização inicial se deu pela necessidade de solidariedade interna e autodefesa contra uma força opressora percebida (Israel ou o Estado penal).


Diferença Crucial de Fundamento: A principal assimetria reside na natureza do conflito. O HAMAS é impulsionado por uma causa geopolítica e ideológica de escopo existencial, visando a alteração da ordem estatal internacional e regional. O CV é movido por objetivos estritamente econômico-criminais, buscando a maximização do lucro e o domínio do mercado ilícito, sem um projeto político para alterar a forma de governo do Estado brasileiro. O HAMAS possui uma dimensão teleológica (orientado por fins, propósitos ou objetivos) explícita; o CV, uma dimensão pragmática.


2. Modus Operandi com a População Local e o Governo


2.1. Controle Territorial e Autoridade Paralela

Ambos exercem uma autoridade paralela em seus territórios de controle. Essa estratégia é fundamental para a sobrevivência e expansão de ambos:

●      HAMAS (Gaza): Atua como um Estado-sombra ou de fato. Oferece uma ampla rede de serviços sociais (escolas, hospitais, assistência financeira), o que lhe garante legitimidade e apoio popular significativo. A violência é empregada contra oponentes políticos internos (Fatah) e, externamente, contra o alvo ideológico (Israel), muitas vezes através de táticas assimétricas, incluindo o terrorismo contra civis.


●      Comando Vermelho (Favelas): Promove uma governança criminal. Impõe "leis" de conduta (ex: proibição de roubos em determinadas áreas, resolução de pequenos conflitos locais, julgamento de pessoas com execuções), funcionando como um Estado regulador onde o poder público é ausente ou falho. A violência é o mecanismo principal de manutenção do poder, sendo dirigida contra facções rivais, milícias e, ocasionalmente, contra as forças de segurança estatais, utilizando arsenal de guerra (fuzis, granadas, e atualmente drones). O objetivo primário é garantir o fluxo do negócio (tráfico) e a ordem interna que o sustenta.

 

Similaridade Estratégica: A cooptação social é uma ferramenta de poder. Enquanto o HAMAS usa a assistência social de forma ideológica, o CV utiliza o mecanismo de proteção e justiça alternativa para criar laços de dependência e aceitação, ou pelo menos, resignação, da população local. O Estado é visto por ambos como uma força invasora ou negligente, o que facilita a obtenção de apoio passivo ou ativo.


2.2. Relação com o Governo Central

●      HAMAS: A relação é de conflito assimétrico direto com Israel, visto como inimigo existencial. Em Gaza, é o poder instituído, atuando como o principal ator político.

●      Comando Vermelho: A relação é de guerra irregular e assimétrica com o Estado brasileiro (Forças de Segurança Pública). O objetivo não é derrubar o governo, mas sim coexistir em antagonismo e garantir a autonomia territorial para a exploração econômica. O CV busca infiltrar-se no sistema político e administrativo para corromper e lavar dinheiro, em vez de o substituir ideologicamente. A violência é o preço da negociação tácita pela autonomia.


3. Apoio Logístico e Financeiro

3.1. Fontes de Financiamento

Fonte

HAMAS

Comando Vermelho

Principal

Doações internacionais (governos, entidades privadas), taxas em Gaza e impostos sobre mercadorias contrabandeadas, e investimentos externos.

Tráfico ilícito de drogas (especialmente cocaína e maconha) e tráfico de armas de alto calibre.

Secundária

Fundos provenientes da diáspora e de atividades de investimento financeiro.

Extorsão (cobrança de "taxas" em áreas controladas, serviços de "segurança"), roubos e lavagem de dinheiro em setores formais (imobiliário, transportes).

 

Similaridade na Rede Transnacional: Ambos são organizações com estrutura transnacional. O HAMAS possui apoio logístico e redes de arrecadação globais. O CV possui alianças estáveis com fornecedores sul-americanos e células operacionais em diversos estados, utilizando o sistema prisional como centro de comando e recrutamento. Ambos exploram as fronteiras fracas e a globalização financeira para sustentar suas operações.


Diferença na Motivação Financeira: O financiamento do HAMAS é, em grande parte, direcionado para sustentar a infraestrutura da "resistência" (militar e social) e o projeto político, ainda que com grande desvio de recursos. O do CV é quase que integralmente direcionado ao enriquecimento pessoal de seus líderes, à expansão do mercado ilícito e à manutenção da estrutura de poder criminal, o que o insere na categoria de crime organizado clássico.


3.2. Estrutura de Comando

●   HAMAS: Possui uma estrutura hierárquica tripartite (política, social/religiosa e militar), com uma liderança estabelecida e internacionalmente reconhecida. A disciplina é alta, regida por um código ideológico.


Comando Vermelho: Possui uma estrutura mais descentralizada e horizontalizada, com a liderança no sistema prisional ou em esconderijos, mas com autonomia operacional para os "donos do morro" e líderes regionais. A lealdade é baseada no pacto criminal, na força e na reciprocidade dos negócios, sendo, portanto, mais volátil que a coesão ideológica.


4. O Debate Jurídico-Estratégico: Brasil e o Conflito Armado Não Internacional (CANI)

A violência urbana e o combate ao Comando Vermelho (CV) e outras facções criminosas têm levantado um debate crítico entre especialistas em direito internacional humanitário (DIH) e segurança: o Brasil está vivenciando um Conflito Armado Não Internacional (CANI)?

De acordo com o Direito Internacional Humanitário (Convenções de Genebra de 1949, Artigo 3 Comum, e Protocolo Adicional II - PA II), um CANI se caracteriza pela ocorrência de hostilidades entre:

1.     Forças armadas do Estado e grupos armados não estatais organizados;

2.     Grupos armados organizados entre si.

A aplicação do DIH exige o cumprimento de dois critérios cumulativos:

1.     O nível de violência deve ser suficientemente alto, sustentado e não esporádico, aproximando-se de hostilidades.

2.     O grupo armado não estatal (no caso, o CV) deve possuir um nível de organização, disciplina e capacidade de comando que o capacite a sustentar operações militares contínuas.


Análise do CV à Luz dos Critérios do CANI:

●  Intensidade e Duração: As confrontações entre o CV e as forças de segurança (Batalhões da PM, Polícia Civil, Forças Federais) no Rio de Janeiro e em outras capitais são frequentes, duradouras, utilizam armamento de guerra (fuzis, granadas, drones) e resultam em um alto número de baixas (policiais, membros da facção e, tragicamente, civis). Esse padrão de violência sustentada e letal satisfaz, na prática, o critério de intensidade de um conflito de baixa ou média intensidade.


●  Organização do CV: O Comando Vermelho não é uma simples "gangue". Possui estrutura hierárquica (mesmo que descentralizada), estatuto interno, divisão de tarefas (comando, vapor, financeiro), centros de comando (presídios) e capacidade logística transnacional para adquirir e distribuir armamento e recrutar membros. Essa organização, focada no controle territorial do mercado ilícito, atende ao critério de organização para ser considerado um "grupo armado organizado".


Possíveis Implicações do Reconhecimento do CANI:

Se a violência no Brasil contra o crime organizado fosse oficialmente reconhecida como CANI, isso acarretaria consequências jurídicas e estratégicas profundas:

1. Aplicação do DIH: O Estado e os membros do CV teriam que respeitar as regras do DIH, incluindo a proteção de civis e a garantia de tratamento humanitário aos combatentes capturados. O enquadramento jurídico sairia do campo estrito da Segurança Pública e do Código Penal para o Direito de Conflitos Armados.


2. Risco de Legitimação: O reconhecimento poderia, paradoxalmente, conferir uma legitimidade política ou militar ao CV que a organização não possui intrinsecamente, elevando seu status de organização criminosa a um ator de conflito armado, como o HAMAS.

3. Dilema Estratégico: A repressão policial passaria a ser vista como "ações militares", podendo levar à aplicação do Jus ad bellum (direito à guerra) e do Jus in bello (direito na guerra - Direito Internacional Humanitário), com graves repercussões internas e internacionais sobre direitos humanos e soberania.

 

Assim, embora o Estado brasileiro resista veementemente a essa classificação por receio da legitimação política e das implicações jurídicas (preferindo tratar o fenômeno como "crime organizado"), a realidade factual e a letalidade assimétrica dos confrontos no Brasil (especialmente no Rio de Janeiro) se assemelham, na prática, aos requisitos de um CANI de natureza puramente criminal.


Conclusão

Acreditamos que a análise comparativa entre o HAMAS e o Comando Vermelho é um exercício essencial para especialistas em segurança e defesa, pois ilumina a natureza híbrida das ameaças contemporâneas.

Nesse sentido, somos de opinião de que o Comando Vermelho não é, ainda, o HAMAS brasileiro.

A assimetria fundamental reside na Teleologia: O HAMAS luta pela substituição de uma ordem política/geopolítica baseada em uma ideologia pan-islâmica e nacionalista, o que o define como uma organização Terrorista/Insurgente. O CV luta pela maximização do lucro e do controle territorial do mercado ilícito, o que o define como uma Organização Criminosa Transnacional. O HAMAS busca mudar a lei internacional; o CV busca evadir a lei nacional.

No entanto, a simetria operacional é inegável:

● Ambos empregam táticas de governança paralela e cooptação social em áreas de vácuo estatal.

● Ambos mantêm um conflito armado de alta intensidade com o Estado (embora a natureza do conflito do CV se encaixe no perfil factual de um Conflito Armado Não Internacional de motivação criminal, ainda que não oficialmente reconhecido).

●  Ambos operam com logística transnacional sofisticada e vasta capacidade de armamento.

Portanto, a grande lição estratégica para o Brasil é que o combate ao Comando Vermelho não pode mais ser relegado exclusivamente à esfera da segurança pública tradicional. As táticas, o armamento, a organização e a dimensão territorial do CV exigem uma resposta Multidimensional e Híbrida, que incorpore elementos de defesa (desarticulação logística e financeira em nível internacional) e de política social/inteligência, em vez de apenas incursões militares pontuais.

O Brasil não enfrenta uma insurgência política, mas sim uma insurgência criminal de poder equiparável, exigindo do Estado uma redefinição urgente de seu enquadramento legal e estratégico para enfrentar uma ameaça que, embora não ideológica como o HAMAS, compromete a integridade da soberania nacional com igual letalidade e eficácia.


Qual a sua opinião?

Seguem alguns vídeos para auxiliar a nossa análise:

Matéria de 30/10/2025:

Matéria de 29/10/2025:

Matéria de 29/10/2025:

Matéria de 30/10/2025:

Matéria de 29/10/2025:


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