A influência das ORCRIM nos Estados da América Latina. Parte V: Diplomacia Naval: EUA x Venezuela.
- Alexandre Tito Xavier
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Introdução: do enunciado “antidrogas” ao xadrez do Caribe
A movimentação de destroieres, navios anfíbios e um submarino de ataque dos EUA para o sul do Caribe, somando milhares de militares, incluindo fuzileiros navais, foi apresentada pela Casa Branca como resposta à intensificação do narcotráfico e à “narcoterrorismo” vinculado a cartéis e redes criminais transnacionais. Em agosto de 2025, foi verificado o envio de um poder naval substancial estadunidense se dirigindo para próximo ao litoral venezuelano, com o argumento oficial de interdição marítima de drogas — embora analistas e autoridades na região também leiam o gesto como pressão estratégica contra o governo Maduro, acusado de pelos EUA de liderar o Cartel de los Soles.
Essa narrativa atual tem precedente operacional: em abril de 2020, o Comando Sul (SOUTHCOM) lançou as Enhanced Counter-Narcotics Operations (ECNO), combinando destroieres, cutters da Guarda Costeira e meios aéreos no Caribe e no Pacífico oriental, conforme podemos ver em https://www.southcom.mil/EnhancedCounterNarcoticsOps/. A experiência mostrou ganhos táticos intermitentes e valor de dissuasão, mas também limites estruturais — sobretudo a capacidade de adaptação das redes criminais.
No plano jurídico-político, a Casa Branca de 2025 vem recalibrando o enquadramento do crime organizado transnacional: a EO 14157, de 20 de janeiro de 2025, criou o trilho decisório para tratar cartéis e facções como Organizações Terroristas Estrangeiras (FTO) e/ou SDGT (terroristas globais especialmente designados), expandindo instrumentos de sanção, congelamento de ativos e cooperação coercitiva. Maiores informações podem ser obtidas em https://www.whitehouse.gov/presidential-actions/2025/01/designating-cartels-and-other-organizations-as-foreign-terrorist-organizations-and-specially-designated-global-terrorists/?utm_source=chatgpt.com. O pacote foi acompanhado por novas peças normativas “anti-fentanil” e por retórica mais dura sobre “narcoterrorismo” envolvendo autoridades venezuelanas.
Pelo lado de Caracas, a resposta combinou em militarização simbólica (ativação massiva da milícia bolivariana, sugerimos a leitura do nosso artigo em https://www.atitoxavier.com/post/colectivos-venezuelanos-as-milícias-chavistas, e reforço de meios navais) e apelo diplomático, apresentando o deslocamento como “diplomacia das canhoneiras” — projeção de poder naval para fins coercitivos, sem guerra declarada. O governo Maduro lê a operação como ameaça à soberania e reforça a narrativa anti-imperialista em foros regionais.
2) MIAG: uma moldura integrada para interpretar a crise
O Método Integrado de Análise Geopolítica - MIAG propõe cinco dimensões — espaço, tempo, força, risco geopolítico e inteligência estratégica — para organizar variáveis dispersas e conectar meios a fins. Adotaremos cada dimensão para destrinchar o quadro atual no Caribe sul. Recomendamos a leitura do nosso artigo disponível em https://www.atitoxavier.com/post/a-importância-estratégica-do-brasil-na-américa-do-sul-uma-análise-geopolítica-baseada-no-miag-e-na para que o leitor possa conhecer a nossa metodologia de análise geopolítica.
2.1 Espaço: o “tabuleiro líquido” Caribe–Atlântico e o corredor venezuelano-colombiano
O sul do Caribe (entre Aruba-Curaçao-Bonaire, o Golfo da Venezuela e as saídas para o Atlântico) funciona como nó de redundância logística dos fluxos de cocaína originados no arco Colômbia–Venezuela–Guiana. O espaço marítimo, poroso e de alta densidade comercial, oferece rotas múltiplas: lanchas rápidas (“go-fast”), pesqueiros, contêineres e semissubmersíveis/“narco-submarinos” — agora inclusive não tripulados, segundo interdições recentes. A geografia favorece evasão por dispersão e “salto de ilha” (insular hopping) rumo a Hispaniola, Porto Rico, Antilhas Menores e, dali, EUA ou Europa.
Ao lermos a matéria do Joint Interagency Task Force South – JIATF - South, disponível em https://www.jiatfs.southcom.mil/News/News-Article-View/Article/4210411/coast-guard-offloads-more-than-138-million-in-illicit-drug-interdictions-in-car/, podemos concluir que a elasticidade espacial é chave: sufoco no Caribe desloca volume para o Pacífico oriental (e vice-versa), exigindo cobertura persistente e coordenação multivetorial (EUA, Colômbia, países caribenhos, Guianas). Mesmo com reforço de meios, apenas frações dos fluxos são capturadas; porém, picos de presença alteram custos de transação do crime e forçam mutações táticas.

2.2 Tempo: janelas políticas, cadência operacional e curva de aprendizado
No tempo político de 2025, o endurecimento normativo (EO 14157) e o narrativo de urgência contra fentanil e cocaína criam uma janela decisória para ações de “alto impacto” visível. Em paralelo, o crime vive o seu melhor ciclo histórico de oferta: a ONU reporta recordes de produção e consumo de cocaína (2023–2024/25) - https://www.unodc.org/unodc/data-and-analysis/world-drug-report-2024.html, o que pressiona governos a mostrar resultados rápidos. Sem uma estratégia de persistência (meses a anos), reforços navais tendem a efeito efêmero.
No tempo operacional, a comparação com 2020 (ECNO) indica que operações navais rendem ondas de apreensões e dispersão de rotas, mas os ganhos deflacionam após a retirada ou rotinização dos meios.
2.3 Força: ordem de batalha, doutrina e diplomacia naval
A força naval dos EUA em questão — destroieres Aegis, meios anfíbios e um submarino — não configura um dispositivo de invasão, mas capacidade robusta de Inteligência, Vigilância e Reconhecimento (ISR) / letalidade (radares, AAW/ASuW, helicópteros, drones, equipes de visita e inspeção - visit-board-search-seizure) adequada à interdição marítima e a manobra diplomática. É um poder naval com fim político-estratégico, classicamente lido como diplomacia naval (mostra de bandeira, coerção limitada, garantia a parceiros). Sugerimos a leitura do nosso artigo acessível em https://www.atitoxavier.com/post/a-influência-das-orcrim-nos-estados-da-américa-latina-parte-iii-a-expansão-da-doutrina-antiterror, visando melhorar a contextualização da nossa análise.
Esse emprego ecoa o que a literatura chama de “diplomacia das canhoneiras”: presença para moldar comportamento e publicizar custo de desafiar a potência marítima, sem necessariamente buscar combate. O nosso artigo “A Força Naval como um instrumento da diplomacia: Diplomacia das Canhoneiras e Diplomacia Naval”, disponível em https://www.atitoxavier.com/post/a-força-naval-como-um-instrumento-da-diplomacia-diplomacia-das-canhoneiras-e-diplomacia-naval, que utilizamos como referência sobre força naval e diplomacia destaca exatamente esse leque de gradações — do diálogo a coerção — como instrumento de política externa.
2.4 Risco geopolítico: atrito, sobrerreação e escalada inadvertida
Um enquadramento antidrogas nas portas de um Estado-alvo politicamente hostil (Venezuela) carrega riscos: incidente tático (colisão, disparo de advertência, “lanchas intrusas”), uso doméstico da crise por governos (patriotismo de ocasião) e efeitos colaterais sobre comércio marítimo e seguros na bacia caribenha. A retórica de mobilização venezuelana e os alertas internacionais sobre “pressão sobre Maduro” elevam a temperatura — mesmo que a massa de forças não sinalize operação anfíbia.
No plano jurídico-normativo, o hibridismo entre polícia transnacional (interdição de drogas) e poder militar extrarregional vive em zona cinzenta: quanto mais se aproxima de “designação terrorista” de facções e alvos “semi-estatais”, mais se cruza a fronteira entre law enforcement (aplicação da lei) e uso da força sob direito internacional. A crítica acadêmica e de parte da imprensa enfatiza esse deslizamento e alerta para precedentes.
2.5 Inteligência estratégica: JIATF-South, métricas e adaptação do adversário
A relação inteligência-operação é o coração da eficácia. No Atlântico-Caribe, o JIATF-South faz a fusão interagências (DoD, DHS, DEA, parceiros) e tem histórico de apreensões relevantes — com variação de teatro (Caribe x Pacífico) e de retorno marginal. Sem ISR persistente, apoio jurídico e cooperação real de Estados costeiros, o ciclo detectar-apreender-estrangular perde fôlego. Mas quando inteligência operacional encontra meios navais e aéreos imediatamente disponíveis, o efeito é multiplicador.
3) O pano de fundo criminal: ORCRIM, narco-cadeias e a nova moldura “antiterror”
As ORCRIM latino-americanas (cartéis mexicanos, Trem de Aragua, consórcios híbridos na Venezuela e Colômbia e o PCC no Brasil) tornaram-se atores transnacionais que operam portos, fronteiras e territórios com graus variados de captura estatal. O debate contemporâneo sustenta que essas redes desafiam a soberania e que sua violência sistemática permite um enquadramento assemelhado ao terrorismo (no plano dos instrumentos de sanção), ampliando o cardápio estatal de constrangimentos financeiros e jurídicos, conforme apresentamos no nosso artigo “A influência das ORCRIM nos Estados da América Latina - Parte III: A Expansão da Doutrina Antiterrorista no Novo Governo Trump”.
Esse movimento normativo ganhou musculatura em 2025, quando o Executivo estadunidense abriu caminho para designar cartéis e facções como FTO/SDGT, conectando sanções, inteligência, diplomacia e meios militares num continuum. A crítica, todavia, aponta zonas cinzentas: extraterritorialidade, debates de soberania e o risco de “efeito bumerangue” — quando o alvo reforça laços com potências extra-hemisféricas (China, Rússia) e repagina sua logística.
4) Venezuela e seus impasses: regime, economia política do crime e o tabuleiro regional
O problema venezuelano combina crise institucional, economia petroleira sancionada, migração massiva e hibridização entre agentes estatais e redes ilícitas. Uma leitura recorrente é que as medidas duras — sanções, cerco naval, ameaças — tendem a produzir coesão defensiva no regime e ampliar custos humanitários, embora aumentem o custo de operação de grupos criminosos e denunciem conexões ilícitas. O impasse geopolítico decorre dessa assimetria entre pressões externas e resiliência autoritária interna, como já havíamos apresentado em 2020 no nosso artigo “O problema venezuelano e os seus impactos e impasses geopolíticos”, acessível em https://www.atitoxavier.com/post/o-problema-venezuelano-e-os-seus-impactos-e-impasses-geopolíticos.
5) Diplomacia naval: sinais, limiares e o que a força no mar realmente representa
Como apresentamos no nosso artigo “A Força Naval como um instrumento da diplomacia: Diplomacia das Canhoneiras e Diplomacia Naval”, o poder naval é instrumento de linguagem. Ele sinaliza prioridades, abre/fecha janelas diplomáticas e redistribui riscos. A literatura sobre “diplomacia naval” lembra que navios podem coagir, tranquilizar aliados, marcar presença jurídica e, ao mesmo tempo, evitar o ponto de não retorno. A operação atual compra tempo para negociações (sanções, listas, extradições) e aperta a braçadeira sobre as rotas marítimas, sem amarrar a Casa Branca a uma opção cinética maior.
6) Implicações para a região e para o Brasil (visão MIAG)
Espaço — O Atlântico Sul e o Arco Norte (Guianas–Amazônia Azul) tornam-se mais sensíveis. Para o Brasil, isso implica reforço de MDA (Maritime Domain Awareness – Consciência Situacional Marítima), cooperação SAR/segurança marítima e blindagem de linhas de comunicação marítima (LCMs).

Tempo — O ciclo 2025–2026 sugere persistência da pressão estadunidense e de mutação criminal. Países costeiros precisam planejamento plurianual (capacidade orgânica, inteligência, cadeias de custódia).
Força — Navios-patrulha oceânicos, helicópteros embarcados, drones e centros de inteligência tornam-se capacidade-chave. Ao Brasil, em nossa visão, interessa projeção sustentada no Norte e cooperação seletiva com JIATF-South, preservando comando e controle nacionais.
Risco geopolítico — Evitar arrasto para disputas Washington–Caracas. Acreditamos que o Brasil deve maximizar autonomia, coordenar medidas policiais e isolar o combate às ORCRIM de agendas políticas polarizantes.
Inteligência estratégica — Investir em sistemas de observação (AIS, RF, satélites comerciais), análise de padrões (contêineres, portos) e cooperação judiciária; metrificar impacto real (apreensões em portos etc).
7) Conclusão: entre a coerção naval e o dilema da resiliência criminal
A decisão dos EUA de projetar força naval no sul do Caribe, sob a moldura de combate ao narcotráfico e ao “narcoterrorismo”, deve ser lida para além do plano imediato da interdição. O MIAG nos permite enxergar que cada variável — espaço, tempo, força, risco e inteligência — atua como engrenagem de um tabuleiro maior, onde Washington busca simultaneamente: desorganizar rotas ilícitas, ampliar o custo de operação das ORCRIM, sinalizar determinação estratégica e pressionar Caracas em meio ao seu isolamento político.
Todavia, a experiência histórica, de 2020 em diante, indica que tais movimentos têm efeitos limitados quando não se conectam a políticas persistentes e de caráter multivetorial. O crime organizado transnacional, pela sua plasticidade, converte pressão militar em adaptação logística, criando um ciclo de deslocamento contínuo de rotas. Assim, a operação naval, por mais impressionante em escala tecnológica e simbólica, não resolve o dilema estrutural: a combinação entre economias ilícitas resilientes e Estados frágeis ou capturados.
Para a Venezuela, a presença de destroieres e submarinos reforça a retórica anti-imperialista e cria coesão defensiva, mas também expõe fissuras internas e conexões indesejadas entre elites políticas e redes criminosas. Para os EUA, é uma aposta de “coerção calibrada”: mostrar bandeira, interromper fluxos críticos e acenar a aliados sem se comprometer com escaladas irreversíveis. O risco, contudo, reside na fronteira tênue entre aplicação da lei transnacional e emprego de poder militar em espaço contestado — um terreno cinzento que pode produzir incidentes táticos e efeitos colaterais estratégicos.
No plano regional, o Brasil e outros atores sul-americanos enfrentam o desafio de não serem arrastados para disputas bilaterais, preservando autonomia e ao mesmo tempo reforçando suas capacidades de monitoramento marítimo, inteligência e cooperação contra o crime organizado. O futuro da segurança no Caribe e no Atlântico não dependerá apenas de destroieres no mar, mas da integração entre diplomacia, governança e políticas sociais capazes de erodir as bases de legitimidade das economias ilícitas.
Em síntese, a operação naval dos EUA próxima ao litoral venezuelano é menos um fim em si mesma e mais um elo de uma cadeia complexa de sinais estratégicos. Ela traduz o paradoxo central da geopolítica contemporânea no hemisfério: potências podem projetar poder, mas não podem, sozinhas, desmontar a arquitetura criminal que se alimenta da desordem estatal. A diplomacia naval, hoje, convive com a necessidade de inteligência compartilhada, de políticas públicas e de construção paciente de soberanias resilientes.
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Matéria de 28/08/2025:
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